segunda-feira, 24 de novembro de 2008

Jornalismo de Gaveta II


Pecado Divino

É sabido que a essência do ser humano ou o folclore cristão consta da existência de sete inglórias, sete pecados costumeiramente cometidos por nós, incautos, mas que acaba sendo motivo de condenação por nossos iguais. Um deles, a ira, é tido como único pecado cometido por Deus e seu filho, Jesus. Para o primeiro, os exemplos são o grande dilúvio, a expulsão de Adão e Eva do paraíso e a destruição das cidades de Sodoma e Gomorra. Do segundo, pode-se falar da sua revolta contra os mercadores que vendiam produtos nos pátios dos templos cristãos. Bem, exemplos à parte, a ira é um pecado peculiar. E foi dela que ficou encarregado o escritor e roteirista de cinema José Roberto Torero, ao escrever para a coleção Plenos Pecados, da editora Objetiva, que tinha como objetivo contemplar cada um dos sete pecados em romances de autores diferentes.

Segundo livro da série, Xadrez, truco e outras guerras mostra com maestria a melhor metáfora para falar da ira: a guerra. Torero explica cada detalhe do que talvez seja a maior manifestação desse pecado, também pela quantidade de pessoas com ira, mas muito pela intensidade da ira assassina sem remorsos — para a maioria — que se apossa dos combatentes. Permeada por muita ironia e sarcasmo, a obra questiona valores do ser humano, como honra, glória, justiça, bondade e igualdade, diante de uma situação de conflito como essa. Além disso, nos leva a pensar na política, nas artimanhas que os mais poderosos articulam para justificar uma guerra, motivada, segundo Torero, nunca por ira, mas por diversos outros motivos, sendo a ira, segundo um dos personagens, “coisa para soldados, nunca para comandantes”.

A arquitetura de José Roberto Torero, na verdade, é bem maior do que parece, analisando os elementos da história mais minuciosamente. Primeiramente, a guerra do enredo se baseia, nada mais, nada menos, do que na Guerra do Paraguai. Uma das causas é a invasão de uma região do país do Rei por parte do exército do país do Ditador. Ademais, o país do Diplomata, conselheiro do Rei, tinha interesse na guerra, pois lucraria muito com a venda de armas para o país do Rei. Na história da Guerra do Paraguai, o “estopim” que desencadeou a batalha foi a invasão do Brasil — ocorrida na então província do Mato Grosso — por parte do Paraguai. O Brasil, na época, era comandado por D. Pedro II (o Rei) e via em Solano Lopez, líder paraguaio, um ditador frio e sanguinário, enquanto era um salvador para o povo do Paraguai (no livro, o Ditador se apresenta como Salvador ao se encontrar com soldados do outro país).

Agravando ainda mais a inteligência da obra de Torero, temos os personagens. Não por acaso, são sete principais. E nos sete primeiros capítulos eles são apresentados. Mas por que “não por acaso, são sete”? Porque Torero, não satisfeito em tratar, em sua obra, de um dos sete pecados somente, resolveu estender-se a todos os outros. Então, assim são os sete personagens e seus respectivos pecados: o Rei (avareza), o General (soberba), o Coronel (inveja), o Capitão (luxúria), o Tenente (preguiça), o Sargento (gula) e, finalmente, protagonista do livro, o Soldado (ira).

Ao longo da história, o autor conta a guerra a partir dos sete personagens e pecados, mas o foco é realmente no Soldado, e, por conseqüência, na ira. Seja no caso da ira transformada em cólera, e do cólera — a doença — provocando a ira. Seja a ira pela gula das moscas que, em certo ponto, infestam a campanha, atacando a comida dos soldados no que o autor chamou de o caso do Banquete. A ira é pecaminosa, pois leva à morte e aos questionamentos do que é o ser humano e quais direitos ele tem de matar um outro. Mas também é divina, nas palavras do Capelão, quando usada contra “as mil faces do mal”. Acima de tudo, e mais impressionante no livro, é a ira pelo amor. Durante a trama, o Soldado conhece a Mulher das Cartas e por ela se apaixona. E é por ela que ele luta, por ela que ele torce para a guerra não acabar. Principalmente, é por ela que ele ira-se.

No fim das contas, José Roberto Torero consegue “vender seu peixe”. Aquele que lê Xadrez, truco e outras guerras (nome dado devido ao livro começar com uma dúvida entre o jogo de truco e o de xadrez a ser jogado pelo Rei contra o diplomata) termina o livro quase com um sentimento de perdão pelo pecado da ira, e começa a questionar-se: seria este realmente um pecado, uma virtude, ou ambos?