terça-feira, 28 de julho de 2009

Conto dos outros


A Aventura de um Esposo e uma Esposa*

O Operário Arturo Massolari fazia o turno da noite, aquele que termina às seis. Para voltar para casa, percorria um longo trajeto, de bicicleta na estação boa, de bonde nos meses chuvosos e frios. Chegava entre as seis e quarenta e cinco e as sete, ou seja, às vezes um pouco antes, às vezes um pouco depois de tocar o despertador da mulher, Elide.

Freqüentemente os dois ruídos, o toque do despertador e o passo dele entrando, se superpunham na mente de Elide, alcançando-a no fundo do sono, o sono compacto da manhãzinha que ela ainda tentava espremer por alguns segundos com o rosto enfiado no travesseiro. Depois pulava fora da cama de uma vez só e já ia metendo os braços às cegas no roupão, com os cabelos por cima dos olhos. Aparecia assim para ele, na cozinha, onde Arturo tirava os recipientes vazios da bolsa que levava consigo para o trabalho — a marmita, a garrafa térmica — e os punha em cima da pia. Já havia acendido o fogão e posto o café no fogo. Mal ele a olhava, Elide sentia vontade de passar a mão pelos cabelos, de arregalar à força os olhos, como se a cada vez se envergonhasse um pouco dessa primeira imagem que o marido tinha dela ao entrar em casa, sempre assim desarrumada, com a cara meio adormecida. Quando dois dormem juntos é outra coisa, encontram-se de manhã a emergirem juntos do mesmo sono, estão em pé de igualdade.

Já às vezes era ele que entrava no quarto para despertá-la, com a xicarazinha de café, um minuto antes que tocasse o despertador; então tudo era mais natural, a careta para sair do sono ganhava uma espécie de suavidade preguiçosa, os braços que se erguiam para estirar, nus, acabavam cingindo o pescoço dele. Abraçavam-se. Arturo trazia no corpo a jaqueta impermeável; sentindo-o próximo, ela percebia o tempo que estava fazendo: se chovia ou havia bruma ou neve, dependendo de como ele estava úmido e frio. Mas assim mesmo dizia: “Que tempo está fazendo?”, e ele iniciava seu costumeiro resmungo meio irônico, passando em revista os incômodos que tinha atravessado, começando pelo fim: o percurso de bicicleta, o tempo que encontrara ao sair da fábrica, diferente daquele de quando lá entrara na noite anterior, e as encrencas no serviço, os boatos que corriam na seção, e assim por diante.

Àquela hora, a casa estava sempre pouco aquecida, mas Elide se despia toda, um pouco arrepiada, e se lavava, no pequeno banheiro. Atrás vinha ele, com mais calma, também se despia e se lavava, lentamente, tirava de cima a poeira e a graxa da oficina. Assim, estando ambos em torno da mesma pia, meio nus, um pouco enregelados, de vez em quando se dando esbarrões, tirando um da mão do outro o sabonete, o dentifrício, e continuando a dizer as coisas que tinham para se dizer, era o momento da intimidade, e às vezes, acontecendo de se ajudarem mutuamente a esfregar as costas, insinuava-se uma carícia, e se encontravam abraçados.

Mas de repente Elide: “Meu deus! Que horas já são!”, e corria para meter as ligas, a saia, tudo com pressa, em pé, escovava os cabelos para cima e para baixo, e debruçava o rosto para o espelho da cômoda, com os grampos seguros entre os lábios. Arturo vinha atrás dela, havia acendido um cigarro, e olhava para ela em pé, fumando, e a cada vez parecia um pouco embaraçado, de ter que ficar ali sem poder fazer nada. Elide estava pronta, enfiava o casaco no corredor, davam-se um beijo, abria a porta e já se ouviam seus passos que desciam a escada correndo.

Arturo ficava sozinho. Acompanhava o ruído dos saltos de Elide degraus abaixo, e quando não a ouvia mais continuava a acompanhá-la em pensamento, aquele passo miúdo, rápido pelo pátio, o portão, a calçada, até o ponto do bonde. Já o bonde se ouvia bem: guinchar, parar, e o bater do estribo a cada pessoa que subia. “Pronto, tomou”, pensava, e via a mulher se segurando no meio da multidão de operários e operárias no “Onze” que a levava para a fábrica como todos os dias. Apagava o cigarro, fechava os postigos das janelas, fivava escuro, metia-se na cama.

A Cama estava como Elide a deixara ao se levantar, mas do lado dele, Arturo, estava quase intacta, como se tivesse sido arrumada naquele momento. Ele se deitava de seu próprio lado, como devia, mas depois esticava uma perna para lá, onde havia ficado o calor da mulher, em seguida esticava também a outra perna, e assim pouco a pouco se deslocava todo para o lado de Elide, naquele nicho de tepidez que ainda conservava a forma do corpo dela, e afundava o rosto em seu travesseiro, em seu perfume, e adormecia.

Quando Elide voltava, à noite, Arturo já havia um tempo rodava pela casa: tinha acendido a estufa, posto alguma coisa para cozinhar. Certos trabalhos ele é que fazia, naquelas horas antes do jantar, como arrumar a cama, limpar um pouco a casa, até pôr de molho as roupas para lavar. Elide depois achava tudo malfeito, mas ele para dizer a verdade não se empenhava muito: o que fazia era apenas uma espécie de ritual para esperar por ela, quase um vir a seu encontro permanecendo entre as paredes da casa, enquanto lá fora se acendiam as luzes e ela passava pelas vendas no meio daquele movimento fora de hora dos bairros onde há tantas mulheres que fazem compras à noite.

Afinal, ouvia o passo pela escada, bem diferente daquele da manhã, agora mais pesado, pois Elide subia cansada do dia de trabalho e carregada de compras. Arturo saía no patamar, tirava da mão dela a sacola, entravam conversando. Ela se jogava numa cadeira na cozinha, sem tirar o casaco, enquanto ele ia tirando as coisas da sacola. Depois: “Coragem, um pouco de ordem”, ela dizia, e se erguia, tirava o casaco, punha uma roupa de casa. Começavam a preparar a comida: jantar para os dois, depois a marmita que ele levava para a fábrica para o intervalo da uma da madrugada, o lanche que ela devia levar para a fábrica no dia seguinte, e o que era para deixar pronto para quando ele acordasse no dia seguinte.

Ela um pouco se atarefava, um pouco se sentava na cadeirinha de palha e dizia a ele o que tinha de fazer. Já ele, era a hora em que estava descansado, agitava-se, aliás, queria fazer tudo, mas sempre um pouco distraído, com a cabeça já em outra coisa. Naqueles momentos ali, chegavam por vezes a ponto de se magoarem, de se dizerem palavras pesadas, porque ela queria que ele estivesse mais atento ao que estava fazendo, que se empenhasse mais, ou então que fosse mais ligado a ela, ficasse mais perto, que a consolasse mais. Enquanto ele, passado o primeiro entusiasmo da volta dela, já estava com a cabeça fora de casa, fixado no pensamento de fazer tudo com pressa porque tinha que ir.

Arrumada a mesa, postas todas as coisas prontas ao alcance da mão para não precisarem mais se levantar, então era o momento da angústia que tomava conta dos dois por terem tão pouco tempo para estarem juntos, e quase não conseguiam levar a colher à boca, da vontade que sentiam de ficar ali segurando a mão um do outro.

Mas o café não havia acabado de passar e já ele estava atrás da bicicleta vendo se estava tudo em ordem. Abraçavam-se. Arturo parecia que só então reparava como era macia e tépida sua esposa. Mas punha no ombro o quadro da bicicleta e descia atento as escadas.

Elide lavava os pratos, examinava a casa de cima a baixo, as coisas que o marido tinha feito, sacudindo a cabeça. Agora ele estava correndo pelas ruas escuras, entre os raros faróis, talvez já estivesse depois do gasômetro. Elide ia para a cama, apagava a luz. De seu próprio lado, deitava, espichava um pé em direção ao lugar do marido, para procurar o calor dele, mas toda vez reparava que onde ela dormia era mais quente, sinal de que Arturo também havia dormido ali, e isso despertava nela uma grande ternura.

*(Italo Calvino – Os amores difíceis (Gli amori difficili)
** A brincadeira com a foto é por dois motivos:
1. Vi Os Incríveis hoje pela terceira ou quarta vez, e é um filme sensacional.
2. Aquela ondinha de se dizer que o que é comum é excepcional, e vice-versa. Porque o conto, para mim, é excepcional de tão simples, de tão ordinário.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Dia 24/07/09


A Quatro Estações

Sentou e acendeu o último cigarro da carteira.

- You know, John, I like classical music. Vivaldi, Le Quattro Stagioni. Do you know this one?

Do outro lado, a voz, ainda desconhecida para nós, tinha um sotaque... latino. Mexicano, talvez?

- I don’t know, patrón. Perdón, I don’t know.
- Oh, that’s bad, John. That’s really pitiful… I was hoping we could hear it together while enjoying some scotch and smoking a good Cuban cigar one of this days. You’ve already did smoke a Cuban cigar, didn’t you, John?
- I am sorry, patrón. I never did. Never did, patrón…
- Hmm… you’re Cuban, right?

- Sí, patrón. Soy cubano.

- So I’ll ask you once again: where the fuck is Jorge hiding? ‘Cause he owes me. And he is Cuban like you. And I really can’t tell the difference between two fucking Cubans, I only know they smell like the shit they had to sleep with while illegally travelling to my country to stole my money. So, you know, I could misunderstand you and Jorge and start to charge you my money instead of him. And I think you wouldn’t find this bueno… vale?

- No, patrón, I would not. Pero…
- Oh, motherfucking Jesus, give the guts not to kill this fucking false Spanish right now. I want a reason why shouldn’t I fucking turn on that blowpipe and stuck it in your ass NOW!

- No, patrón!

- And stop calling me patrón! Just fucking sing to me! Come on!!
- I could not tell you, pat… señor, pero Marco knows. I can get you to Marco and we…
- Shut up. Flint, take this poor man outta my sight. And, please, don’t let him soil the room with his Spanish shit or piss. Do it clean this time.


Ao apagar o cigarro, Larry pensou que algo estava realmente errado. Cada homem que ele interrogava indicava o último homem interrogado (e, obviamente, morto). Eles sabiam o que acontecia naquele galpão. Sabiam, e mesmo assim não fugiam, deixavam-se ser capturados, torturados e mortos sem dizer uma palavra. Estava numa sinuca de bico. Se continuasse, teria que erradicar toda a comunidade cubana residente em São Francisco. Mas não podia deixar um canalha escapar sem pagar o que deve. Nunca fez isso. Era hora de tomar uma decisão, hora de entrar de cabeça no ramo do qual ele sempre fugiu. Tinha de assumir o controle da cidade. No fim das contas, era mesmo hereditário. Acendeu um charuto cubano, também o último da carteira. Telefonou para a esposa e cancelou o jantar com o vereador. Subiu no trem e calculou o tempo até a quarta estação depois daquela. Ligou o ipod. Precisava de um pouco de Vivaldi. Não só porque não queria escutar os gritos de dor do maldito cubano, realmente não era mais tão irritante assim depois de tantos outros. Mas para ajudá-lo a se acalmar. É preciso muita calma e sangue frio antes de olhar nos olhos e atirar bem no meio da cabeça do homem a quem você chama de “pai”.